No panorama das artes sempre existiu uma certa tensão entre o erudito e a tradição. Entretanto hoje parece estar havendo um certo espaço de conexão entre a arte contemporânea e a arte popular, entre a intelectualização e a massificação.
Teorizar tal questão é um desafio para nossa imaginação e muitos teóricos e filósofos como Marx, Goethe, Hegel e muitos outros, já realizaram análises fundamentais sobre o tema. Vale arriscar algumas impressões atuais sobre a interação estética entre a Arte Popular e a Contemporânea: Do ponto de vista social, estimular esta conexão pode favorecer a abertura cultural para as camadas populares e enriquecer de forma genuína e criativa a arte contemporânea brasileira. O diálogo e a troca entre estéticas em nossa sociedade desigual aponta uma abertura para o surgimento de novas propostas de produção cultural, mas para isso é necessário um olhar cuidadoso sobre o quê a cultura de periferia anda desenvolvendo e mostrando.
O artigo Sarau de Rua de Aline Durães (Jornal da UFRJ, maio de 2009) descreve que Heloísa Buarque de Holanda, diretora da editora Aeroplano e professora do programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) da UFRJ, organizou em 2008 a coleção Tramas Urbanas, composta por dez livros escritos por moradores do subúrbio que produzem manifestações de cultura. Um dos livros da coleção, Cooperifa - Antropofagia Periférica, lançado em agosto de 2008, escrito por SergioVaz, narra a história do projeto que desenvolve em Piraporinha, bairro do município de Diadema (SP). No livro ele conta como transformou o bar da esquina em centro cultural, onde todas as quartas-feiras pelo menos 300 pessoas se reúnem para recitar poesias e letras de raps. Outro exemplo bastante explorado e conhecido é o movimento hip-hop que foi o propulsor de visibilidade da arte periférica popular, apesar de ser um movimento global, apresenta singularidades do território onde é experimentado, e conquistou o mundo por sua postura contestadora. Antes de defender a necessidade de explorar a conexão entre estas duas artes, vale a pena pincelar um pouco de cada uma delas.
A Arte Contemporânea, também chamada de Pós-Moderna é posicionada como sucessora da Arte Moderna. À partir dos anos 70, movimentos como o Pop Art, Minimalismo, Fotorrealismo, Internet Art e Street Art, a arte das ruas, baseada na cultura do grafiti e inspirado na geração hip-hop, ampliaram a definição de arte e passaram a incluir, além de objetos palpáveis, idéias, ações e obras que exigiam a participação do público, como as instalações e a arte ambiental. A arte contemporânea está aberta a uma pluralidade de estilos, que estimulam um pensamento sobre a própria arte ou uma análise crítica da prática. Ela surge questionadora e aberta até para incorporar matrizes populares na arte erudita. Mesmo sob grande influência tecnológica e acadêmica o artista contemporâneo não precisa colocar-se à frente da tecnologia, pode utilizá-la como um meio ou não. Também não está mais vinculado a instituições políticas e religiosas influentes, já que não são mais financiados por estas. O que aproveitamos de bom nisso é que podemos determinar a contemporaneidade através da qualidade da linguagem, da expressão da idéia que a obra quer dizer e como esta vai chegar ao espectador. Há uma tendência ao comentário social ao instaurar um diálogo com o público e fazê-lo pensar, interagir, no entanto definir arte ou definir conceitos de arte contemporânea não é nada simples e não há conceito que satisfaça a todas as pessoas.
A arte popular manifesta normalmente representações que refletem aspectos do imaginário, sentimentos e temas da vida social comum à região onde esta se desenvolve, tais como aspectos religiosos, histórias, costumes da vida festiva e psíquica de um grupo. O artista popular na sua produção e trabalho artístico retira da sua realidade e do ambiente em que vive a matéria prima para inspiração de suas obras, muitas vezes dotadas de senso crítico, ironia e humor. Este tipo de arte não exige uma estética proveniente de conhecimento acadêmico, mas espera-se uma técnica ou domínio artesanal nato ou herança das tradições familiares e regionais do artista. Cito um exemplo sobre minha experiência junto a um artista popular de periferia que desenvolve sua arte e expressão crítica da realidade através da intuição, observação e fruição. Na comunidade do Morro dos Prazeres, na cidade do Rio de Janeiro, onde se apresentam inúmeros grafitis coloridos nos becos e muros, conversei com o artista grafiteiro “Duim”, antigo pixador de muros públicos. Um de seus grafites pintados na quadra esportiva da comunidade retrata um menino expressivo com olhos tristes que segura com uma de suas mãos um prato de comida vazio e ostenta em seus pés um tênis da moda. Ao questioná-lo sobre sua técnica ele declarou que aprendeu a grafitar sozinho, observando e recebendo dicas de outros companheiros. Quanto a inspiração e motivação para criar seus desenhos, disse lembrar de situações dolorosas do passado, e revelou ser um observador da comunidade. “O menino não sente tristeza!” Ele contesta a minha afirmação. “O menino sente fome! Quer ser desejado pelas meninas e por isso utiliza um tênis da moda.”. No decorrer da conversa ele elogiou o grafiteiro Fábio Guimarães da Silva, conhecido como “Ema”, que desenhou grafites na comunidade dos Prazeres e expôs sua arte no espaço SESC de Copacabana. Fábio deixou de ser pixador, hoje é VJ do grupo Rappa e usa sua arte em programas sociais, sendo referência. Serem reconhecidos e terem oportunidades de desenvolver sua arte é o sonho desses artistas.
Não se pode negar as dificuldades que os artistas chamados populares encontram para o reconhecimento de suas obras. Analisar essas obras permite apreender o ponto de vista e a prática dos grupos historicamente marginalizados. Ao incentivarmos a conexão de artistas populares e contemporâneos, abrimos janelas que criam espaço para novas e revigorantes leituras da realidade sócio cultural brasileira. Hoje a arte contemporânea admite a idéia da arte pela arte, a ênfase na originalidade e o compromisso com a arte popular.
A democratização das artes para toda população ainda é um obstáculo a ser superado pela sociedade brasileira, não é novidade que o acesso à arte sempre foi um privilégio das classes sociais mais altas e que a grande maioria do povo brasileiro carece de educação cultural. O conceito de “cidade partida” criada pelo jornalista Zuenir Ventura ilustra bem esta distância cultural entre ricos e pobres. Em contraponto, vivemos o impacto da difusão de novas tecnologias a baixo custo que aumentam o acesso da população aos bens culturais através da internet e softwares livres. Os atuais meios alternativos de produção cultural (internet, rádio, TV, vídeo) criam novos espaços (organizações sociais, pontos de cultura, sindicatos, empresas, entre outros) e alargam a noção de formação e produção artística. A educação tornou-se comunitária, virtual e a escola estendeu-se da cidade para o planeta. Hoje se pensa em rede, se pesquisa em rede, se trabalha em rede. Propor uma conexão entre a Arte Popular e Arte Contemporânea é um ato convergente a esta evolução. Trata-se de ações que podem acontecer e já acontecem fora da escola, que contribuem e podem contribuir muito mais para o desenvolvimento e a formação de jovens moradores de espaços populares.
Fernanda Oliva
Coord. Executiva da osc Praticável
Artigo Publicado no segundo caderno do Jornal do Brasil em 09-07-2009
Referências bibliográficas
BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva, 1991.
DURÃES, Aline. JORNAL DA UFRJ. “Sarau de Rua”, p. 24. Rio de Janeiro: UFRJ, maio, 2009.
FREIRE, Paulo. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Editora da UNESP, 2001.
______. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
VENTURA, Zuenir. Cidade Partida. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1995.
Fernanda Oliva é licenciada em Artes Cênicas pela Uni-Rio e Pós-graduada em Gestão Social pela UCAM. Coordenadora-executiva voluntária da OSC Praticável.
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